terça-feira, 11 de agosto de 2009


Ninguém é 100% homem ou 100% mulher. Somos todos intersexuais.

Qua, 22/07/09
por Letícia Sorg

Depois dos heterossexuais, dos homossexuais e dos transexuais, chegou a vez dos “intersexuais”. Para o imunologista Gerald Callahan, professor da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, não somos homem ou mulher. O pesquisador chegou a essa conclusão ao estudar as pessoas que nascem com genitália ambígua. “Pode acontecer de a pessoa ter a genitália interna feminina e a externa masculina”, diz o imunologista. Por isso, não são, de cara, identificadas como homens ou mulheres. Em seu livro Between XX and XY - Intersexuality and the Myth of Two Sexes (Entre XX e XY - Intersexualidade e o Mito dos Dois Sexos), lançado neste mês nos Estados Unidos, Callahan conta a história de algumas pessoas nessa situação e convida todos a repensar a rígida divisão das pessoas em apenas dois extremos. “Hoje penso no sexo de uma pessoa como se pensasse em sua posição política ou na cor de seus olhos ou cabelos. Há todo um espectro”. Depois de ler a entrevista de Callahan ao Mulher 7×7, você ainda acha que o mundo pode ser dividido entre homens e mulheres?

Como o senhor decidiu escrever o livro sobre intersexualidade?
Gerald Callahan – Dou um curso na universidade sobre a construção do eu em que falo sobre como formamos a imagem de nós mesmos. E um dos assuntos de que falamos é gênero, que é um dos primeiros que surgem quando tentamos definir quem somos. E tentamos refletir sobre como o gênero afeta o modo como nos vemos. E, fazendo uma pesquisa para esse curso, vi um artigo da revista Discovery, vários anos atrás, que dizia que, por ano, nascem, no mundo, 65 mil crianças com sexo indeterminado, ou seja, que não são identificados como meninos ou meninas logo de cara. E fiquei muito surpreso com esse número. Como imunologista, já sabia de algumas raras síndromes que geravam crianças intersexuais, mas nunca uma quantidade desse tamanho de pessoas. Vi que havia muito mais a se dizer sobre o assunto, que eu poderia estudar mais sobre a determinação biológica do sexo no desenvolvimento das crianças. Vi que a ideia que eu tinha há tanto tempo sobre apenas duas opções de sexo, mulher ou homem, era muito limitada para entender o mundo. Estamos todos entre um extremo e outro. Somos todos intersexuais.

Esse trabalho teve alguma influência sobre sua forma de ver o mundo?
Callahan – Ele basicamente alterou tudo. Numa sala cheia de pessoas, hoje, tenho uma noção muito maior da variedade, e não espero que as pessoas se comportem de uma maneira ou de outra. Até mesmo sobre mim não penso mais do mesmo jeito. Penso em mim mesmo como uma mistura entre feminino e masculino: estou em algum ponto no meio desses dois extremos. Hoje penso no sexo de uma pessoa como se pensasse em sua posição política ou na cor de seus olhos ou cabelos. Não consigo mais dividi-las tão facilmente em duas categorias e esperar delas um certo tipo de comportamento. Há todo um espectro.

Cientificamente, o que nos define como homens ou como mulheres?
Callahan – No final da minha pesquisa, senti que não havia critério para definir claramente se uma pessoa era homem ou mulher. A maioria das pessoas cita os cromossomos: mulheres são XX e homens são XY. Mas uma mulher que foi corajosa o suficiente para falar comigo em minha pesquisa era XY. Ela foi tomada como uma menina e cresceu como uma menina. Só depois os testes apontaram características masculinas, como o cromossomo Y e a testotesrona. Mas o fato é que ela não tinha células para receber esse hormônio. Há também casos de homens que são XX. Pode acontecer, também, de a pessoa ter a genitália interna feminina e a externa masculina, por causa da superprodução de hormônios masculinos durante o desenvolvimento. Portanto, a aparência da genitália pode não ser suficiente para definir uma pessoa como macho ou fêmea… E tudo vai ficando muito complicado. Encontrei mesmo um caso nos Estados Unidos em que a certidão teve que ser corrigida anos depois do nascimento da criança.

O senhor acha que sua argumentação poderia, por exemplo, servir de base para a liberação do casamento entre homossexuais?
Callahan – Sim. Se você estivesse tentando aprovar uma lei sobre isso, eu incentivaria a questionar como se define se alguém é homem ou mulher. Em muitos casos, é preciso levar em consideração o comportamento, a percepção das pessoas sobre si mesmas, para definir o gênero. Uma das pessoas com quem falei para o meu estudo, por exemplo, era XXXY. Isso significa que, no útero, ela começou seu desenvolvimento como um par de gêmeos, mas se tornou um único indivíduo. Ela tem genitália ambígua, mas pensa em si mesma como uma mulher. O sexo, no fim das contas, pode ser mais social do que biológico. Por isso, acho que a opinião da pessoa é um fator determinante.

Não sei se o senhor soube, mas um casal da Suécia decidiu criar sua criança sem revelar seu sexo. Os pais chamam-na de Pop e compram roupas azuis e rosa. Eles dizem que querem que a criança cresça com liberdade, sem um sexo que molde o seu comportamento. Qual sua opinião sobre isso?
Callahan – Acho admirável. Uma das pessoas com quem falei, uma especialista da Universidade de Northwestern que trabalhou muito com intersexuais, disse que é necessário que os pais decidam o sexo da criança, como vão tratá-la, mesmo sem submetê-la a uma cirurgia. Não sei se concordo com essa visão, mas, certamente, há muita pressão externa para definir o sexo de uma criança. Por exemplo: quando ela for à escola, que banheiro vai usar? Ela pode, inclusive, ficar marginalizada dos grupos se não se decidir se vai ficar com os meninos ou as meninas. Por outro lado, sou favorável a dar mais liberdade para as crianças, a dar tacos de baseball também para as meninas e bonecas também aos meninos.

Uma criação como essa poderia acabar com coisas como o machismo, o feminismo, o preconceito contra os homossexuais?
Callahan – Sim, absolutamente. Mudaria completamente a situação da homofobia. De certa forma, as pessoas ficam amedrontadas de pensar dessa maneira, sem gêneros, e é por isso que elas pensam que têm que escolher entre uma ou outra opção. Os transexuais, aqueles que veem a si mesmos como do sexo oposto ao que têm, estão entre os mais discriminados nos Estados Unidos. Isso acontece porque somos criados com essa ideia muito fixa e clara de pertencer a um ou a outro. Os pais costumam dizer: “Você pode ser o que quiser quando crescer”. De fato, você pode ser tudo o que quiser, menos do sexo oposto.

Como o senhor acha que a sociedade deveria lidar com os casos de intersexuais?Callahan – Na minha opinião, na maioria das vezes, não há nada a ser feito do ponto de vista cirúrgico na infância. Não é uma condição que ameace a vida nem que necessite tratamento imediato. No primeiro momento, essas pessoas precisam de um acompanhamento com um pediatra muito competente, provavelmente acompanhado de um endocrinologista, de um assistente social e de um psicólogo. Isso deve ajudar a própria criança a decidir, mais para frente, o que deve de fato ser feito.

O episódio Which sex am I? da série My Shocking Story (Minha história chocante), exibida pela Discovery, mostrou o caso de uma mulher que não se conforma de ter sido submetida a uma cirurgia para extirpar testículos internos sem o seu conhecimento. Seus pais disseram que ela ia retirar uma hérnia. Essa situação é comum em casos de intersexuais?
Callahan – É surpreendentemente comum. Todas as quatro pessoas com quem falei para o livro chegaram à idade adulta sem saber o que tinha sido feito a elas quando crianças e apenas uma conseguiu manter uma boa relação com os pais. Os pais tentaram fazer o melhor, mas não perceberam que tinham a opção de não operar. Não sei se você chegou a ver, mas há cerca de um ano, o programa da Oprah Winfrey recebeu vários intersexuais que não tinham feito nenhuma cirurgia e levavam uma vida sexual satisfatória. Eles não sentiram necessidade de alterar o modo como eram e viviam bem. Outros especialistas conhecem muitos casos semelhantes. O problema é não ter uma palavra para se referir a essas pessoas.

O mesmo documentário mostrou o caso de uma criança indonésia que, antes de completar 2 anos, foi submetida a uma cirurgia para se tornar um menino. Os pais praticamente tiveram que escolher o sexo da criança. O que o senhor acha de situações como essa?
Callahan – Em geral, nesses casos, a função reprodutiva é a primeira a ser levada em conta. O prazer sexual acaba ficando em segundo plano por causa da mentalidade das pessoas. Na minha opinião, se há pessoas nessas condições que se mostram sexualmente satisfeitas, mesmo que não possam ter filhos biológicos, essa deveria ser a prioridade.

É possível comparar a nossa noção de gênero com a de outras espécies?
Callahan – No caso dos répteis, por exemplo, a temperatura do lugar onde estão os ovos pode determinar o sexo dos filhotes. Nenhuma espécie, é claro, tem as mesmas características que nós, e elas variam de formas muito diferentes entre as espécies. Mas há uma espécie de primata, os bonobos, que é muito próxima de nós: dividimos com eles 98% do nosso DNA. Entre os bonobos, a interação sexual vai muito além do que apenas uma forma de reprodução. Esses e outros primatas usam o sexo de muitas outras formas: para negociar, para ganhar comida, para prevenir agressões. Há muitas interações entre machos e fêmeas que não têm nada a ver com a concepção de filhotes. São espécies muito próximas a nós e acho que demonstram que o sexo tem outras funções, que reprimimos por causa da herança cristã.

O senhor acredita que a ciência saberá explicar melhor a homossexualidade, por exemplo?
Callahan – Um dos pontos relacionados ao gênero é a orientação sexual e não entendemos a biologia envolvida nisso. Se entendermos o sexo como um espectro, podemos entender a orientação sexual da mesma maneira – e não dividida apenas em homossexuais e heterossexuais. É importante lembrar também que, mesmo não havendo nenhuma chance reprodutiva, o comportamento homossexual deve ter vantagens biológicas. Se elas não existissem, ele teria sido eliminado muito tempo atrás. Há outras funções do sexo que não enxergamos nessa tentativa de simplificar. Tentamos dividir em preto e branco, mas a realidade não é assim.

Como o senhor imagina que será o mundo com relação aos gêneros no futuro?Callahan – Assisti a um filme, Milk, em que o personagem principal, Harvey Milk (interpretado por Sean Penn, ganhador do Oscar de melhor ator), é assassinado porque é homossexual. Hoje em dia, principalmente nas cidades grandes, estamos muito mais confortáveis com os homossexuais e mais cientes da variedade de orientação sexual entre as pessoas. A grande vantagem para a população homossexual é que muitos deles são muito bem educados e razoavelmente bem de vida e podem levar a causa adiante. No caso dos intersexuais, as coisas são mais difíceis, por ser um número muito pequeno de pessoas. Mesmo assim, espero que, num futuro não muito distante, consigamos superar algumas de nossas crenças a respeito da definição de gênero. Que as pessoas consigam entender que os seres humanos têm formas variadas e que essa é a natureza da biologia. E a orientação sexual é uma delas. E que tudo seja visto simplesmente como uma face da humanidade. Talvez digamos às crianças: “Você é um ser humano como todos os outros e é diferente de todos os outros, como todo mundo.”

5 comentários:

  1. É de grande importância um livro como este, mas ao final da entrevista suas ideias evolucionistas e funcionalistas como uma tentativa de justificar o 'diferente' merecem uma problematização, não acham?

    "É importante lembrar também que, mesmo não havendo nenhuma chance reprodutiva, o comportamento homossexual deve ter vantagens
    biológicas. " (Callahan). É preciso ter vantagens evolutivas para que possa existir e ser aceito? E se não tiver?!


    "Se elas não existissem, ele teria sido eliminado muito tempo atrás. Há outras funções do sexo que não enxergamos nessa tentativa de
    simplificar." (Callahan). Função, função e função...ai, ai.

    O que acham?

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  2. O texto é interessante a foca um assunto muito pouco conhecido e discutido. Acho que de certa forma é uma crítica as representações de gênero. Como ninguém é perfeito,rs, ele escorrega em questões funcionais. Acho que o prazer vai além de funções biológicas, e na imanência dos encontros a sexualidade irá sempre ter a possibilidade de criar novos afetos e territórios.

    Bruno Costa
    www.costabbade.blogspot.com

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  3. "o sexo tem outras funções, que reprimimos por causa da herança cristã."
    acho que essa frase sintetiza muita coisa...
    bjs e abraços,

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