quinta-feira, 15 de outubro de 2009

"Cadê nosso Stonewall?" por João Silvério Trevisan

"Em 1973, deixei o Brasil e fui morar nos Estados Unidos, mais precisamente em Berkeley, cidade ao lado de San Francisco, na California. Aí vivi metade dos 3 anos que passei em exílio provocado pela ditadura militar. Berkeley era então um verdadeiro caldeirão de experiências da contra-cultura, com um intenso debate político sobre direitos civis, inclusive femininos e homossexuais. Eu, ex-seminarista com veleidades anarquistas, curtidor de rock´n roll e homossexual recém-saído do armário, viajei para lá desejoso de viver o meu tempo e conhecer novas alternativas. Enquanto trabalhava em restaurante para sobreviver, eu me descobri fazendo parte de uma luta e de uma comunidade. Enturmei-me com jovens homossexuais, integrei-me em grupos gueis de conscientização (alguns reunidos em salões de igreja), trabalhei em programas de rádio para a comunidade guei, freqüentei grupos de anti-psiquiatria, fiz pique-nique no dia do Orgulho Gay, participei da Gay Parade de San Francisco e mergulhei na intensa vida sexual que se descortinava por toda parte. O mais engraçado era que ninguém se preocupava em integrar-se necessariamente a nenhum grupo ativista. A comunidade discutia política homossexual como se a respirasse no ar. E todos participávamos da luta liberacionista pelo simples fato de sermos homossexuais.

Nada disso caiu do céu. Em 1969, um episódio violento deflagrou o moderno movimento homossexual. Ocorreu nas ruas, protagonizado por homossexuais anônimos, legítimos representantes da comunidade guei. Em Nova York, na madrugada de 28 de junho desse ano, uma sexta feira, ocorria uma batida policial rotineira num bar dançante, o Stonewall Inn, em Grenwich Village. O local, freqüentado sobretudo por homossexuais jovens, não brancos e travestis, tinha fama de ligação com a máfia, funcionava sem alvará para bebidas alcoólicas e apresentava shows de go-go boys semi nus. Era, portanto, um prato cheio para o novo delegado que acabara de tomar posse no Distrito Policial do bairro e precisava mostrar serviço. Conforme relato do jornal Village Voice de 3 de julho de 1969, a pequena multidão de clientes retirados à força do bar começou a gritar e vaiar, diante da prisão de algumas pessoas. A chispa incendiária ocorreu quando, ao ser levada por um policial, uma lésbica reagiu e começou a incitar à briga. A resposta foi imediata. Da multidão, mas também das janelas vizinhas, começaram a chover moedas, latas de cerveja e garrafas sobre os policiais. Mais homossexuais foram aparecendo e passaram a atirar-lhes pedras do calçamento. Um grupo trouxe um parquímetro retirado da calçada, com o qual golpeou as portas trancadas do bar, como um ariete. Alguém gritou pedindo gasolina e, de repente, o bar estava em chamas. Mais policiais chegaram, para resgatar seus colegas acuados pela multidão. À frente do ataque aos policiais, não estavam representantes da classe média local, mas travestis porto-riquenhos e jovens bichas desmunhecadas - gente que não tinha nada a perder. A revolta se espalhou pela vizinhança, por toda a madrugada e a noite seguinte, com homossexuais enfurecidos jogando latas de lixo contra carros da polícia e enfrentando um esquadrão da polícia anti-motim, aos gritos de "Gay Power". No sábado, os muros da região estavam cheios de pichações conclamando ao gay power. No domingo, o poeta Allen Ginsberg apareceu no local para dar seu apoio e comentou com a reportagem: "Os gueis perderam aquele olhar ferido que tinham dez anos atrás." Logo depois, nascia em Nova York o Gay Liberation Front, um grupo de homossexuais militantes que pregava a revolução guei. Ramificações dessa organização espalharam por todo o país a luta pelos direitos homossexuais, inclusive em estados mais conservadores e cidades menores. Saídas do meio da comunidade e não de partidos políticos, as novas lideranças homossexuais foram elaborando um programa político novo e passaram a usar um discurso próprio, a partir dos direitos homossexuais. Inaugurava-se aquilo que passou a se chamar gay mouvement.

Bem diverso foi o processo no Brasil. Aqui, o movimento homossexual nasceu e continuou sendo, com raras exceções, uma atividade de classe média. Além de não termos leis expressamente contrárias à prática homossexual, o ativismo guei sofreu grande atraso por causa do "jeitinho" brasileiro: ao invés de enfrentar a situação, aqui é mais fácil manter uma vida homossexual disfarçada detrás de um casamento hétero. Nos Estados Unidos, a barra sempre foi muito mais pesada para homossexuais: ainda existem vários estados onde a sodomia é ilegal, mesmo que praticada em privado. Portanto, lá a luta contra a discriminação tornou-se muito mais radical e mobilizadora, independentemente das classes. Outro fator é o diferente tipo de esquerda que havia no Brasil e nos Estados Unidos, no seio das quais nasceu o movimento guei. Na época da batalha de Stonewall, boa parte das nascentes lideranças homossexuais americanas compartilhava da contra-cultura, com vivência nas lutas pelos direitos civis, que não se restringia às classes médias. Considere-se também que, no caso americano, não se tratava de uma esquerda hegemônica, organizada em torno de um projeto partidário centralizador. Os partidos socialistas americanos nunca foram tão fortes quanto na América Latina. Lá o espectro ideológico da nova esquerda (new left) integrava-se ao espírito da chamada contra-cultura, na qual vicejavam diferentes tipos de socialistas e marxistas, hippies, anarquistas, pacifistas, ativistas negros, militantes feministas e ambientalistas. Estruturada em torno dos direitos civis e da luta contra a guerra no Vietnã, a nova esquerda americana deixou que as lideranças homossexuais bebessem em sua fonte, mas também teve flexibilidade para lhes permitir uma identidade própria. Assim, quando o moderno movimento homossexual começou nos Estados Unidos, já estava em curso uma severa crítica das feministas à esquerda machista. Foi delas que o ativismo homossexual americano emprestou vários conceitos ligados a questões de gênero e não apenas de classes. Portanto, pode-se dizer que o movimento de liberação homossexual americano é filho da contra-cultura e logo passou a dialogar com ela. No Brasil, ao contrário, era mais difícil o convívio com as divergências, nas alas progressistas. Ainda que contrárias ideologicamente aos partidos da elite burguesa, nossa esquerda manteve sempre a mesma postura autoritária da política tradicional do país. Organizou-se em partidos centralizadores e teve dificuldade para se antenar com temas mais modernos. Como sempre visou posições hegemônicas, opôs-se ferrenhamente à autonomia do movimento negro, de mulheres e de homossexuais. Lembro do meu assombro no II Congresso da Mulher Paulista, em 1980, quando militantes do MR-8, grupo dissidente do partido comunista, invadiram o TUCA-SP, onde se realizava o encontro, e deram porradas nas feministas, sob pretexto de que elas estavam provocando a fragmentação da luta proletária. No mais das vezes, tratava-se de partidos homofóbicos. Quando nós do grupo SOMOS-SP nos organizamos como primeiro grupo de liberação homossexual do Brasil, em 1978, ficamos diante de um paradoxo: aprender quase tudo com as esquerdas que nos rechaçavam e buscar um discurso próprio, que propiciasse inclusive críticas ao machismo esquerdista.

A organização centralizadora da esquerda passou para os grupos de liberação homossexual, que sempre se engalfinharam em disputas pelo poder. Assim ocorreu com o grupo SOMOS-SP, tomado pela Convergência Socialista, através de um golpe em 1981. Isso jogou no lixo o esforço pela autonomia, pois boa parte das lideranças homossexuais passaram a se curvar às prioridades do recém-nascido PT, o único partido que apoiava a luta pelos direitos homossexuais. O movimento guei de São Paulo, então o mais estruturado do país, debilitou-se até quase desaparecer, na década de 1980. Quando a epidemia da Aids irrompeu, por volta de 1983, tentei organizar uma frente contra a doença, e fui procurar os remanescentes do SOMOS, emblematicamente instalado nas dependências do diretório do PT, no Bixiga. A resposta que ouvi do seu líder me deixou assustado pelo sectarismo infantil: o grupo não ia gastar energia com "doença de bicha burguesa que tinha dinheiro para viajar a Nova York". Anos depois, infelizmente ele morreu dessa mesma "doença burguesa". Quanto ao SOMOS, transformado em apêndice da esquerda partidária, descaracterizou-se e sumiu do mapa. Daí por diante, a militância guei tornou-se refém das prioridades do PT.

O resultado é que até hoje o ativismo homossexual no Brasil tateia em busca de um discurso político próprio. Ao contrário, os projetos e as abordagens do movimento homossexual brasileiro continuam, no geral, tributários da esquerda heterossexual. Graças a essa cooptação, boa parte das lideranças gueis fala um jargão restrito à classe média politizada, o que dificulta sua interação com a comunidade homossexual e se traduz em reduzidíssima capacidade de mobilização. As exceções são as Paradas do Orgulho Gay, que infelizmente se reduzem a um dia por ano. Mas, enquanto nos Estados Unidos há inúmeros políticos abertamente homossexuais eleitos em todo o país, o Brasil não consegue emplacar representantes gueis nem para o legislativo. Abandonada a si mesma, a comunidade homossexual brasileira perpetua uma grave inconsciência política, e não consegue se juntar para lutar por seus direitos. Cria-se um círculo vicioso, no qual as lideranças não se comunicam com a coletividade que, por sua vez, não participa do processo, gerando lideranças fragilizadas por excesso de trabalho, vaidade e disputa de poder. Como conseqüência, a comunidade homossexual brasileira continua sujeita a líderes oportunistas, que se apropriam da voz da coletividade, para manipular e se auto-promover. Enquanto isso, a liberação guei parece ter conseguido apenas o direito de consumir - sexo, drogas e roupas da moda. Triste fim para algo que um dia pretendeu transformar a sociedade."

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